O autocuidado como luta política

O autocuidado como luta política

Quando eu comecei a escrever sobre autocuidado, fiquei preocupada que o assunto fosse relacionado a falar de cosméticos, massagens em spa e tratamentos de beleza. Eu, como uma mulher branca de classe média, nunca quis reforçar esse estereótipo.

O autocuidado está longe do conceito criado pelo capitalismo nos últimos anos. É um tema que surgiu com Audre Lorde na década de 80. Audre foi uma escritora feminista negra e lésbica que viveu nos Estados Unidos. Ela defendia os direitos humanos e participou das lutas pelos direitos civis das mulheres negras americanas. É uma das pioneiras do feminismo interseccional – que faz um recorte das opressões que as mulheres vivem em consequência da raça e da classe as quais pertencem.

As redes sociais ajudaram a fomentar as discussões feministas nos últimos anos. A palavra “empoderamento” ganhou força para alertar as mulheres sobre a necessidade de questionar os papéis determinados a elas: cuidar dos filhos, da casa, do marido.

E quem cuida de quem cuida?

Esse era o questionamento de Lorde lá nos anos oitenta. E ela escreveu: “Cuidar de mim mesma não é autoindulgência, é uma autopreservação e isso é um ato de guerra política”. Ou seja, um ato de resistência das mulheres aos papéis que elas foram condicionadas a aceitar desde a infância. A escritora fala muito em autocuidado no seu livro “A Burst of Light”, sem tradução no português.

E, tanto nos seus escritos como nos seus discursos, Audre Lorde sempre argumentou como o autocuidado não pode ser um ato individual, como não existem lutas individuais e como tudo está conectado à política, ao mundo a nossa volta. Portanto, é impossível falar em autocuidado de forma dissociada de uma luta política.

Alguns exemplos de autocuidado coletivo podem ser encontrados no movimento de libertação das mulheres, na educação sexual nas escolas e na defesa ao aborto seguro. Lorde já explicava a necessidade de se dar o necessário para o próprio bem-estar, buscar redes de apoio, estabelecer limites para si e nas relações com os outros.

Para uma mãe negra de periferia autocuidado talvez esteja relacionado a ter tempo para ir a uma consulta médica ou fazer a própria comida. Ações que não tem nada a ver com o autocuidado mostrado nas redes sociais e que muitas vezes envolvem consumo: cosméticos, roupas, viagens e terapias.

Quando o autocuidado vira produto, transformamos um conceito feminista em mercadoria.

É a negação de tudo que Audre Lorde defendeu e escreveu. Desde o surgimento do coronavírus, o assunto autocuidado estourou nas redes sociais. Mas é preciso entender o autocuidado como autopreservação e cuidado saudável com o corpo, a mente e o espírito. O Brasil é o país dos ansiosos e depressivos, e as principais vítimas são as mulheres. Separar um tempo pra si é um gesto de amor-próprio e não de egoísmo.

Quando eu tirei dois anos para o meu autocuidado, eu estava doente e exausta. E com isso, eu não percebia que o meu período de descanso era visto por outras mulheres-mães como um privilégio.

Com o passar dos meses, eu comecei a me questionar:

Por que o autocuidado não chega até as mães negras de periferia, que são a maioria das mães no Brasil?

Por que não têm creches em todas as empresas, para que as mães possam trabalhar com tranquilidade e manter a saúde mental?

Por que mulheres-mães ganham menos e fazem tripla jornada, sem tempo pra cuidar delas mesmas?

A quem servem as indústrias da beleza, da moda, da alimentação, do “bem-estar”?

O capitalismo nos transformou em reféns do tempo, da aparência e do patriarcado. Vivemos numa sociedade terrivelmente desigual, em que o autocuidado está vinculado à classe social, raça e gênero.

Para o filósofo francês Michel Foucault, o autocuidado real traz liberdade. Aprender a cuidar da mente, do corpo e da alma traz sabedoria. Leva à autorreflexão. Faz a gente perceber que existem formas melhores de viver do que as que o capitalismo nos impôs.

Cuidar das nossas necessidades, das nossas emoções, da nossa saúde. Autocuidado é tudo isso. Cuidar de si traz sim muita liberdade. Mas também responsabilidades. Porque o autocuidado deve ser uma prática coletiva. O pessoal é político! Precisamos lutar para que todas as mulheres-mães possam ter o autocuidado que elas necessitam para viver melhor. E essa luta envolve debates, ativismo, questionamentos.

As cargas de trabalho que temos são aquelas que desejaríamos para as mulheres-mães que apoiamos?

Que tipo de autocuidado é inclusivo e deveria chegar a todxs?

O modo como nos relacionamos com outras mulheres-mães é aquele que acreditamos que ajuda na transformação social?

Precisamos da pausa e do descanso para restabelecer forças. Eu pude perceber isso na minha própria trajetória. Mas falar de autocuidado exige um compromisso ético e uma posição política. O bem-estar não é um privilégio, mas um direito.

É construir uma rotina mais saudável, tentar se alimentar melhor, fazer os exames ginecológicos, conhecer o próprio corpo. Separar um tempo para acalmar a mente. Pedir ajuda. Saber impor limites e dizer não. Buscar seu fortalecimento individual, sem se alienar da luta coletiva das mulheres. Tenho certeza que esse era o autocuidado que Audre Lorde queria nos mostrar.   

 

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